quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Melinda

Por Dalton González

Ainda me flagro pensando em Melinda. Faz tanto tempo! Uma menina! Aparentava ter cerca de 15 anos, seu corpo denunciava isso, mas era cinco anos mais velha. Uma mulher num corpo de menina, que a muitos confundiam. Sempre a encontrávamos nas ruas de meu bairro. Ela sempre recebia os olhares com jeito desconfiado, arredio. Melinda não conversava, apenas respondia com monossílabos nossas inquisições. Era uma menina-problema, diziam os vizinhos.
Sempre me interessei por Melinda. Talvez porque em seu silêncio ela muito me ensinou. Aprendi com ela o que não deveria ser ou fazer. Era um exemplo a não ser seguido, de convivência, de respeito e de vida em sociedade. Aquela jovem não conhecia nada disso. Mas sabia muito da vida.
Foi Melinda, a primeira mulher dos meus amigos. Todos diziam que ela sabia o sexo em todas as suas particularidades. Infelizmente eu não pude comprovar aqueles boatos. Desejava muito ter Melinda em meus braços e em minha vida. Mas não desejava o seu passado. Queria apagar todo ele e me pegava imaginando como fazê-lo.
Ela morava em um quartinho no Solar dos Artistas, um velho edifício onde moravam alguns boêmios, gatunos e bon vivants da região. Era um lugar muito mal freqüentado e Melinda era uma das poucas moradoras. Seu quartinho ficava no subsolo, era úmido e frio. Atacava minha alergia mas eu gostava dos espirros... Como sempre busquei sua amizade, Melinda, por algum motivo que eu desconhecia, me premiava com fortuitos convites para entrar.
Era engraçado porque ela nunca me olhava diretamente, como as vezes fazia com os outros garotos. E também se prendia em recatos quando estava a sós comigo. Ela nunca respondeu a um carinho meu e na única vez que a beijei no rosto, ela repeliu meus lábios como se tivesse nojo de mim. No entanto, era comigo que Melinda mais conversava. E era comigo, que dividia os seus maiores segredos. Daí, eu conhecia Melinda no seu eu, mas não a conhecia como queria. Ficava pensando na sua lógica. E a admirava por isso. Mas não gostava.
Quando entrava em seu quartinho, ela me indicava a cama velha onde dormia, para que pudesse me sentar. Puxava um tamborete encardido debaixo da cama e se sentava. Sempre olhando para o chão – eu nunca me esqueço. E me contava coisas.
Sua mãe havia morrido ainda quando ela era criança e o pai era desconhecido. Melinda fora criada pelo padrasto, um homem muito cruel que abusara dela, desde pequena. Sua vida sempre fora um filme de terror. Até que num dia de fúria, seu padrasto a espancou e tentou violá-la mais uma vez e ela, um pouco mais velha e mais forte conseguiu resistir. Então, aquele homem a ameaçou de morte com um cutelo e ela não teve outro recurso se não fugir. Viveu pelas ruas desde os doze anos. Se prostituía em troca de comida. Até que arranjou de um amante, o quartinho sujo onde morava.
Isso tudo era um pouco do que eu sabia.
Então, ainda me dá um nó na garganta, uma angústia doída ao me lembrar de Melinda. E agora que ela se foi, fico a me perguntar o porquê dela ter aparecido na minha vida daquele jeito, ter me pedido os meus ouvidos e nada mais, quando eu podia ser dela por inteiro. Mas foi daquele jeito.
Ainda me recordo daquela manhã ensolarada, quando Melinda estava sentada junto a sarjeta, debaixo do poste, com o olhar distante, perdido. Aquele corpo franzino inclinado quase junto as coxas e o semblante teso como se sentisse dor. Ainda me recordo que aquela não era uma única manhã de sua vida. Era o que ela vivia. E eu nada podia fazer.
Certo dia, sentado em sua cama, após ouvir seus martírios, perguntei-lhe:
“O que eu posso fazer por você?”
E ela, na única vez que me olhou nos olhos disse:
“Apaga isso. Leva embora!”
Aquele pedido me comoveu. E eu prometi a mim mesmo fazer de tudo por ela. Então lhe consolei, peguei-a em meus braços e foi à única vez em que pude fazer isso, até que ela me evitou com o braço magricela. Melinda ergueu sua cabeça e sem olhar para mim me disse:
“Não desista de mim.”
Eu fiz o que eu deveria fazer. Não desisti dela e não desistiria nunca. Melinda até então havia sido o meu amor adolescente, o meu sonho de criança, a minha mais doce aventura. Melinda fazia sentido na minha vida. Era o sal que dava gosto ao meu paladar. Melinda era tudo pra mim. Eu nunca desistiria dela.
Mas, quisera a vida, que ela desistisse de mim.


Belo Horizonte, 12 de Fevereiro de 2008.

Nenhum comentário: