quarta-feira, 21 de abril de 2010
Arroz, feijão, angú e carne moída
Por Deiber Nunes Martins
Era noite, pessoas voltavam para suas casas depois de um dia estafante de trabalho. Um dia normal como todos os outros, para todo mundo, inclusive José, inclusive eu. Voltava para casa, cansado, depois de um dia tenso e provocador, com o gosto amargo de uma derrota em minha boca, em minha alma. Havia sido derrotado em meus intentos pessoais talvez para ser manietado em minhas vaidades, em meus interesses. Chateado com toda aquela situação em meu trabalho, tentava concentrar-me no livro, enquanto o ônibus enchia como um balaio de feira. Fazia frio, e pude contemplar a loucura da cidade, medida no barulho, nos arrulhos do trânsito, dos vendedores, enfim de uma vida cosmopolita.
Passávamos a frente da Catedral da Boa Viagem, quando o sinal fechou e avistei os guardadores e lavadores de carro se posicionando, calculando espaços para uma vaga aqui outra acolá. Era hora da Santa Missa. Em meio a correria daqueles homens por entre os carros estacionados no entorno da catedral, estava José, arranhando com o garfo sua marmita de alumínio amassada, garimpando os últimos farelos de comida.
Um dos passageiros do ônibus, sentado mais ao fundo do coletivo, conhecia José e por isso indiretamente, ficamos sabendo o nome daquele homem que ao ser chamado, ergueu o corpo por sobre a coluna de um dos carros, a marmita e o garfo seguros na palma de uma das mãos, a outra segurando o pedaço de pano que serviria para dar brilho a pintura do veículo. Era tudo muito rápido a ponto de se parar pra comer e no instante seguinte voltar a rotina dos baldes com água, escovões, estopas e flanelas, ferramentais do ofício de lavador de carros.
Li em um jornal há algum tempo que a prefeitura de nossa cidade estava confortável no afã de proibir o trabalho dos guardadores e lavadores de carro, os chamados flanelinhas. É bem verdade que uma pequena máfia de flanelinhas tira o sossego dos cidadãos, cobrando pagamento adiantado, arranhando os carros e sendo cúmplices nos roubos e furtos. Mas também é verdade que muitos trabalhadores, ganham a vida guardando e lavando carros pelas ruas de BH. Assim sendo, muito em breve aquele José e todos os outros seriam defenestrados ou passariam a ganhar o pão na clandestinidade.
Mas aquele homem ainda podia tomar conta dos carros e lavá-los e por isso se apressava em pegar a flanela. No entanto, ao ouvir o chamado cumprimentou o passageiro, que lhe perguntou curioso:
“O rango deve ter sido bom, Cê ta quase lambendo a marmita. Que tinha de bom aí?”
“Arroz, feijão, angu e carne moída. Não é todo dia que dá pra comer e hoje trouxe um banquete de casa, se pudesse eu repetia...”
O sinal abriu, o passageiro fez um sinal para José e este voltou ao seu batente, colocando a marmita em um canto na rua, enrolada em uma sacola.
José voltou para o seu trabalho, satisfeito com aquela comida que comera e assim, podia saborear o seu trabalho também. Eu, em meu cansaço, talvez não tenha saboreado minha marmita como deveria. Sem dúvida alguma, os infortúnios de José eram mais sérios que os meus. Faltava-lhe comida e quando conseguia levar arroz, feijão, angu e carne moída na marmita, era o seu banquete. Minhas atribulações vinham de um trabalho sem identidade, repetitivo, que agregava pouco valor, o que me desmotivava. Era um trabalho arroz com feijão, mas eu precisava fazer deste um banquete. Aquele José, mesmo sem me conhecer, estava me ensinando uma boa lição.
Belo Horizonte, 21 de abril de 2010.
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