segunda-feira, 31 de março de 2014

Ela consegue. Mas será que é o bastante?


Por Deiber Nunes Martins

Outro dia assistindo ao Filme “Não sei como ela consegue”, estrelado pela ótima Sarah Jéssica Parker, me atentei novamente para uma de minhas maiores inquietações: os filhos órfãos de pais vivos. Com o mundo cada vez mais imerso em devaneios que espremem nosso horizonte temporal (trânsito, trabalho excessivo, TV, internet, excesso de informação, telefone celular e suas desnecessárias funções...) a criação dos filhos cada vez mais se vê delegada a profissionais e semiprofissionais da educação – avós, tios (irmãos dos pais ou funcionários da escolinha), professores e outros. A terceirização educacional cada vez mais precoce é hoje um dos principais martírios do mundo contemporâneo. Uma perversa e imperceptível forma de alienação.
No filme, Sarah é Kate Reddy, uma executiva de sucesso workaholic que divide sua vida entre o trabalho, o casamento e a criação dos filhos. Sua vida “tripla” complica-se ainda mais quando passa a trabalhar com Jack Abelhammer, vivido por Pierce Brosnan. No filme, o ponto máximo é compreender que a vida de Kate é um malabarismo, onde o importante não é o modo como se segura os malabares mas o modo como os deixa em suspensão no ar. É a vida moderna, onde exercitamos o malabarismo com o trabalho, os amigos, a família, o cônjuge e os filhos.
Ah os filhos! As crianças são as que mais sofrem com nossas limitações de tempo. Na sociedade moderna, pai e mãe dividem cabeça a cabeça um lugar ao sol no competitivo mercado de trabalho. Teoricamente, o homem sai em vantagem pela experiência de ser o chefe numa sociedade patriarcal, mas a mulher cada vez mais se iguala em posição, por sua competência e pela inversão de valores do mundo moderno, onde cada vez mais as famílias se tornam matriarcais.
Na disputa entre os gêneros, os derrotados sempre são os filhos. Sem a referência de pai, cada vez mais distante dentro e fora de casa, os filhos vão perdendo também a referência da mãe. É cada vez mais antiquado para as meninas brincar de casinha, fazer comidinha e cuidar das bonecas. Porque as filhas de hoje se espelham na mãe assoberbada e dividida entre o trabalho, o computador, o telefone celular e a novela. Se a infância deixa de lado as brincadeiras de dona de casa, a adolescência as menospreza e a juventude a repudia. Chega a ser um acinte uma jovem que saiba cozinhar! As mães iniciantes quando não contam com suas mães e sogras, contam com as babás que hoje funcionam como consultorias especializadas quando o assunto são os filhos. A mãe do século XXI é a mãe descosturada da realidade doméstica e de uma maternidade profissional. Pais e mães de hoje são bons na arte circense dos malabares, bons em economia, finanças, nas questões jurídicas... mas são um fiasco quando o filho precisa de uma reprimenda, de uma correição por conta de ter quebrado a vidraça do vizinho ou ter agredido a professora. Desconhecem as noções básicas da educação infantil, as premissas basilares do comportamento humano e da convivência social.
Descolados de qualquer referência familiar, os filhos são formados pelas referências que de certa forma se aproximam do ser família. Às vezes um irmão, outras vezes o pai de um amigo, o vovô, a vovó, quando estes dão conta de todos os netos, a tia boazinha da escola que sempre expressa com carinho o visto às atividades no caderninho... e por aí vai. Em suma, uma educação empobrecida, descompromissada e sem norte. Pais que esperam do filho saber boas maneiras ensinadas pela professora, pelos avós e amigos, são pais que lamentarão o protagonismo de sua prole na delinquência juvenil.
Viver fazendo malabarismo com os filhos é tão nocivo quanto dormir e acordar dentro de um reator nuclear. A terceirização educacional é um perigo ambulante, como foi Chernobyl e como é Fukushima. Entretanto, as tendências modernistas de nossa sociedade, encobrem os riscos do descolamento de pais e filhos. A cultura impregnada no inconsciente coletivo do povão é que o fato é um mal necessário. Afinal, pai e mãe precisam trabalhar!
Se antes os pais eram acusados de não entenderem, vide as belas canções da Legião Urbana, hoje nem réus eles podem ser, por não estarem presentes. Os filhos estão sempre em suspensão e no tempo em que se passam nas mãos dos pais malabaristas, sempre o dividem com o telefone, a TV, o Facebook... Distrações mundanas que contribuem para que filhos não tenham tempo de ser filhos e pais não tenham tempo de ser pais.
O resultado deste malabarismo de pais e mães está cada vez mais presente e tangível em nossa sociedade: jovens cada vez mais jovens envolvidos com alcoolismo, drogas, prostituição. Envolvidos no mundo do crime, causando nos mais precipitados e conservadores uma repulsa tamanha, a ponto de se exigir severas punições aos mesmos. Se a minha geração podia se contar nos dedos o adolescente que nunca havia bebido uma cerveja, as gerações de hoje, pode se contar nos dedos o jovem que ainda não flertou com a maconha, a cocaína e o crack.
O pior cego é aquele que não quer ver. Assim como o pior órfão é aquele de pais vivos. Como é triste ver crianças filhas de amigos e pessoas próximas, que nunca receberão um abraço gostoso de pai, um beijo sincero de uma mãe! Como é triste ver que muitos de nossos amigos, preferem se fazer presença nas redes sociais a dedicar uma pequena parcela de seu tempo à lição de casa do filho. Ou pior e ainda mais nocivo: quantos pais passam o dia inteiro sem sequer dar um alô para os filhos! Consideram-se os melhores pais do mundo porque são capazes de dar o que o filho pede no instante do pedido, viajam com os filhos nas férias ou fazem a festinha dos sonhos do filho no aniversário. Estes pais acabam tendo o mesmo final feliz da Kate só que no papel. No cinema. Na vida real precisam conviver com a responsabilidade de serem pais do filho que formaram ou que por conta da vida de malabarista que levam, deixaram de formar.

Belo Horizonte, 31 de Março de 2014.